sábado, novembro 8, 2025
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Quando o poder pune o gênero: a exoneração que expôs o peso político de ser mulher no serviço público

Uma decisão de Ibaneis Rocha reacende o debate sobre como a política continua tratando mulheres como extensão dos homens e não como sujeitos autônomos

Uma exoneração recente na Secretaria de Cultura do Governo do Distrito Federal trouxe à tona um velho padrão do poder: mulheres ainda são punidas politicamente por vínculos e alianças que pertencem ao universo masculino. A decisão partiu do governador Ibaneis Rocha (MDB), que determinou a dispensa de uma servidora com desempenho reconhecido, apenas porque é casada com um dos advogados de um adversário político, o ex-governador José Roberto Arruda, pré-candidato ao Buriti.

O caso é emblemático não apenas pela natureza da exoneração, mas pelo que ela revela: quando o conflito é entre homens, a consequência recai sobre a mulher. A mensagem política, segundo fontes internas do próprio governo, é clara: impor alinhamento total entre servidores e o grupo do Palácio do Buriti. Essa exigência de fidelidade irrestrita remonta a práticas de mando que lembram o voto de cabresto, agora reeditadas dentro da máquina administrativa. O controle político sobre servidores, em especial sobre mulheres, reproduz a mesma lógica patriarcal e patrimonialista que sempre confundiu o espaço público com o poder pessoal de quem governa.

Se fosse ao contrário

Nos bastidores, a pergunta que circula é simples: se fosse o contrário, se um homem fosse casado com uma mulher que atua juridicamente para um adversário político de Ibaneis, ele seria exonerado? A resposta provável, entre observadores políticos e servidores do próprio GDF, é não. A assimetria é evidente: a identidade política feminina ainda é lida a partir das relações conjugais e não de sua própria atuação profissional.

A exoneração, portanto, não é apenas uma decisão administrativa. É um gesto simbólico de controle sobre o gênero feminino no espaço público, em que a neutralidade técnica é subjugada pela lealdade política e em que essa lealdade é cobrada de forma desigual.

O poder como espaço masculino

Ao longo da história política do Distrito Federal, as disputas entre grupos de poder, como Arruda, Agnelo, Rollemberg e Ibaneis, tiveram homens como protagonistas. A única mulher a ocupar o cargo de governadora, Maria de Lourdes Abadia, assumiu o posto de forma interina em 2006, após a saída de Joaquim Roriz. Mesmo no comando do governo, enfrentou o isolamento político de lideranças masculinas e acabou derrotada por José Roberto Arruda no primeiro turno das eleições daquele ano.

O episódio reforça a lógica estrutural. Quando mulheres alcançam o topo, geralmente o fazem em contextos de transição ou fragilidade política. O poder real, consolidado e duradouro, continua sendo masculino.

Essa dinâmica ajuda a compreender por que, nas disputas mais recentes, as mulheres continuam sendo as primeiras atingidas quando há realinhamento político ou conflito entre grupos. O espaço político segue regido por códigos que as colocam como substituíveis e vulneráveis.

Hoje, o próprio Ibaneis Rocha tenta projetar uma imagem de equilíbrio ao apoiar a vice-governadora Celina Leão como possível candidata ao governo em 2026. Nos bastidores, porém, aliados reconhecem que o movimento é estratégico: Ibaneis aposta na candidatura de Celina como forma de manter o comando político nas suas mãos, mesmo fora do Palácio do Buriti. Ele se apresentaria como articulador e fiador de um eventual governo dela, garantindo a continuidade da influência e do controle sobre a estrutura de poder local. A manobra reforça o mesmo padrão que atravessa toda a trajetória política do Distrito Federal, em que o apoio a mulheres em posições de destaque ocorre apenas quando a autoridade masculina permanece como eixo de decisão.

Ao mesmo tempo, Ibaneis se movimenta para disputar o Senado em um cenário que, ironicamente, será dominado por candidaturas femininas. Nomes como Michelle Bolsonaro, Leila Barros e Erika Kokay aparecem entre as principais concorrentes na corrida pela vaga do Distrito Federal. A disputa deve expor um paradoxo: enquanto o governador tenta se afirmar como liderança de um bloco masculino de poder, é justamente entre mulheres que ele encontrará seus maiores desafios eleitorais. O jogo político, que até aqui puniu o gênero feminino pela lealdade, pode agora testar os limites da hegemonia masculina no voto.

A face institucional da desigualdade

O caso da exoneração sem motivo técnico ou funcional expõe de forma direta a fragilidade do que se poderia chamar de acesso à justiça política. No serviço público, as mulheres continuam mais expostas às consequências das disputas partidárias, sobretudo quando as decisões são tomadas em esferas onde as relações pessoais se sobrepõem aos critérios institucionais.

O episódio mostra que a lógica do poder local ainda opera sob os mesmos códigos que uniram patriarcalismo, patrimonialismo e controle político. No centro dessa engrenagem, a mulher continua sendo o elo mais vulnerável: é cobrada por fidelidade, mas punida quando sua autonomia desafia a hierarquia masculina.

A política do Distrito Federal, uma vez mais, revela que a desigualdade de gênero não está apenas nas urnas ou nos cargos, mas nas formas sutis de comando que insistem em transformar o espaço público em propriedade privada do poder.

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